Filhos de criação: eles têm algum direito legal?

Advogado especialista em direito de família conversando com um casal sobre os direitos legais de filhos de criação e o reconhecimento de paternidade socioafetiva.

O Direito de Família brasileiro passou por uma profunda transformação nas últimas décadas. Aquele antigo adágio popular, “mãe é quem cria”, deixou de ser apenas uma expressão de afeto para se tornar um pilar jurídico reconhecido pelos tribunais. A realidade social de famílias recompostas, padrastos, madrastas e, principalmente, dos chamados “filhos de criação”, impôs ao Judiciário uma nova perspectiva: a de que os laços de afeto podem, sim, gerar direitos e deveres legais, equiparando-se aos vínculos biológicos ou adotivos.

Muitas pessoas dedicam a vida a criar uma criança que não geraram biologicamente, assumindo publicamente o papel de pai ou mãe em todos os seus aspectos — financeiro, educacional e, acima de tudo, emocional. Contudo, quando o tema é herança, pensão ou registro civil, surge a dúvida angustiante: essa relação, construída na prática, tem algum valor perante a lei?

A resposta é afirmativa. O ordenamento jurídico brasileiro desenvolveu o conceito de paternidade (ou maternidade) socioafetiva como instrumento para garantir justiça a essas relações. Este artigo destina-se a esclarecer, de forma didática e técnica, quais são os direitos dos filhos de criação e como é possível buscá-los formalmente.

A Evolução do Conceito de Filiação: Do Sangue ao Afeto

Durante séculos, o Direito esteve ancorado na verdade biológica. A filiação era determinada exclusivamente pelo vínculo sanguíneo ou, em casos específicos, pela adoção formal. A legislação, entretanto, precisou evoluir para acompanhar a complexidade das relações humanas modernas.

O Direito brasileiro, em sintonia com a Constituição Federal (que preza pela dignidade da pessoa humana e pela igualdade entre os filhos, vedando qualquer discriminação), passou a valorizar o afeto como elemento constitutivo da filiação.

Nasce, assim, a filiação socioafetiva. Ela não é um termo popular; é um instituto jurídico robusto que reconhece como pai ou mãe aquele que, de fato, exerceu essa função ao longo da vida, independentemente da origem biológica. O “filho de criação” é, portanto, o principal candidato ao reconhecimento dessa modalidade de parentesco.

O Que Configura a “Posse de Estado de Filho”?

Para que o vínculo socioafetivo seja reconhecido judicialmente, não basta um simples carinho ou uma ajuda financeira eventual. A Justiça exige a comprovação robusta da chamada “posse de estado de filho”.

Esse conceito significa que a relação deve ser a aparência social de uma filiação verdadeira. O filho de criação deve ser visto e tratado pela sociedade e pela família como se filho biológico fosse. Os tribunais analisam, principalmente, um tripé de requisitos:

  1. Tratamento (Tractatus): Este é o pilar mais importante. Refere-se ao conjunto de atos que demonstram que o pai ou mãe socioafetivo dispensava ao filho tratamento idêntico ao que daria a um filho biológico. Isso inclui prover sustento, educação, custeio de plano de saúde, orientação moral e, claro, afeto e cuidado contínuos.
  2. Reconhecimento Social (Fama): A relação não pode ser clandestina ou secreta. É essencial que o círculo social — amigos, familiares, vizinhos, escola — reconheça aquela pessoa como pai/mãe da criança/adolescente. Perguntas como “Ele o apresentava como filho em eventos sociais?” são cruciais.
  3. Nome (Nominatio): Embora não seja um requisito obrigatório, o uso do sobrenome do pai ou mãe socioafetivo pela criança ou adolescente (em redes sociais, na escola, ou mesmo a intenção de incluí-lo no registro) é um forte indício da consolidação desse vínculo.

É fundamental entender que o reconhecimento da socioafetividade exige um vínculo estável, duradouro e público, construído ao longo de anos.

Direitos Concretos: O Que o Filho Socioafetivo Pode Reivindicar?

Uma vez que a paternidade ou maternidade socioafetiva é reconhecida (seja voluntariamente em cartório ou por decisão judicial), ela se torna irrevogável. Mais importante: ela equipara o filho socioafetivo ao filho biológico ou adotivo em absolutamente todos os aspectos legais.

Os principais direitos que surgem desse reconhecimento são:

1. Direito à Herança (Direitos Sucessórios)

Este é, frequentemente, o ponto de maior conflito, especialmente quando o reconhecimento é buscado post mortem (após o falecimento do pai/mãe socioafetivo).

Se o vínculo for comprovado, o filho socioafetivo entra na sucessão como herdeiro necessário, concorrendo em igualdade de condições com os filhos biológicos ou adotivos. Ele terá direito à sua parte na legítima (a metade dos bens que é obrigatoriamente destinada aos herdeiros necessários), não podendo ser excluído da partilha.

Muitos inventários são paralisados ou modificados drasticamente pela inclusão de um herdeiro socioafetivo que não constava nos documentos originais.

2. Direito a Alimentos (Pensão Alimentícia)

A obrigação de sustento é uma via de mão dupla. O filho socioafetivo (menor de idade, ou maior que curse universidade/curso técnico) tem o direito de pleitear pensão alimentícia do pai/mãe socioafetivo, caso este se afaste ou deixe de prover o sustento.

Da mesma forma, o pai ou mãe socioafetivo, caso se torne idoso e necessite de amparo, também poderá pleitear alimentos do filho socioafetivo (princípio da reciprocidade).

3. Direitos de Personalidade (Nome e Registro)

O reconhecimento garante ao filho o direito de incluir o sobrenome do pai/mãe socioafetivo em seu registro civil (certidão de nascimento), sem que isso implique a exclusão dos pais biológicos, configurando a multiparentalidade (ter dois pais ou duas mães no registro).

Isso tem reflexos em toda a vida civil, garantindo um senso de pertencimento e identidade formal.

4. Direitos Previdenciários

O filho socioafetivo reconhecido passa a ter direito a benefícios previdenciários, como a pensão por morte deixada pelo genitor socioafetivo perante o INSS ou regimes próprios de previdência.

Como Formalizar o Vínculo Socioafetivo?

Existem dois caminhos principais para que o “filho de criação” tenha seus direitos legalmente assegurados, transformando o vínculo de fato em um vínculo de direito.

1. Reconhecimento Extrajudicial (Em Cartório)

Desde 2017 (Provimento nº 63 do CNJ, atualizado pelo Provimento nº 83), é possível realizar o reconhecimento da paternidade/maternidade socioafetiva diretamente no Cartório de Registro Civil.

Este caminho é mais rápido e menos burocrático, mas exige que:

  • O filho tenha mais de 12 anos.
  • Haja consentimento do próprio filho (se maior de 12) e dos pais biológicos (se o filho for menor de 18).
  • O pai/mãe socioafetivo manifeste voluntariamente o desejo de reconhecer.

Será necessário apresentar documentos que comprovem a posse de estado de filho (fotos, declarações de escola, etc.), que serão analisados pelo oficial do cartório e, posteriormente, pelo Ministério Público.

2. Reconhecimento Judicial (Ação na Justiça)

Este é o caminho necessário quando não há consenso, ou quando o reconhecimento é buscado após o falecimento do pai ou mãe socioafetivo.

A Ação de Reconhecimento de Paternidade (ou Maternidade) Socioafetiva é um processo mais complexo, pois exigirá uma produção de provas muito mais robusta. O autor (o filho) precisará demonstrar ao juiz, de forma inequívoca, que a relação de afeto existiu e configurou a posse de estado de filho.

Neste cenário, provas documentais (fotos de viagens, comprovantes de pagamento de escola, prints de conversas afetuosas, declarações) e provas testemunhais (depoimentos de amigos, familiares, professores) são absolutamente essenciais. É comum que essa ação seja movida em conjunto com a petição de herança, para garantir os direitos no inventário.

O Afeto Como Fato Jurídico

O tempo em que apenas o sangue definia uma família ficou para trás. O Direito brasileiro amadureceu e hoje protege aqueles que construíram suas relações no afeto, no cuidado e na convivência diária. O “filho de criação” não é uma figura invisível para a lei; ele é um potencial titular de direitos.

Contudo, a transformação desse afeto em direitos patrimoniais (como a herança) ou de registro (como o nome) não é automática. Ela depende de uma atuação jurídica técnica e estratégica para coletar as provas corretas e apresentar o caso da maneira mais sólida possível, seja em cartório ou nos tribunais.

Lidar com questões de socioafetividade, especialmente em cenários de inventário onde outros herdeiros resistem ao reconhecimento, exige sensibilidade e profundo conhecimento técnico.

Se você é um “filho de criação” e busca o reconhecimento dos seus direitos, ou se você é um pai/mãe socioafetivo e deseja formalizar o vínculo para garantir a segurança jurídica do seu filho, o primeiro passo é a orientação.

Entre em contato com nosso escritório. Somos especialistas em Direito de Família e Sucessões, com ampla experiência em casos de reconhecimento de paternidade socioafetiva. Podemos analisar sua situação particular, esclarecer suas dúvidas e traçar a melhor estratégia para assegurar que os laços de afeto sejam convertidos em direitos legais plenos.

Priscila Casimiro Ribeiro Garcia

Advogada altamente qualificada, Pós Graduada em Execuções Cíveis pela OAB/SP. Especialista em Direito de Família, atuante na área há mais de 15 anos.

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