Na realidade brasileira, a figura da mãe que enfrenta uma “jornada tripla” – cuidando da casa, dos filhos e de sua carreira – é não apenas comum, mas frequentemente heroica. Quando essa jornada se desdobra em dois empregos formais, surge um desafio adicional, impulsionado pela necessidade de prover sustento e garantir o melhor para sua prole.
Contudo, no turbilhão de um divórcio litigioso, essa dedicação é, por vezes, distorcida. O genitor oposto pode tentar usar a longa jornada de trabalho da mãe como argumento para pleitear a guarda unilateral, alegando “ausência”, “falta de tempo” ou até “negligência”.
Esse argumento gera um medo profundo: será que o esforço para dar uma vida digna aos meus filhos pode ser usado contra mim no tribunal? A mãe pode perder a guarda dos filhos por trabalhar muito?
A resposta, sob a ótica da moderna jurisprudência do Direito de Família, é enfática: não. Este artigo visa desmistificar essa crença, explicando como o Judiciário diferencia o esforço do abandono e quais são os pilares que realmente definem a guarda no Brasil.
Desenvolvimento: Desconstruindo Mitos e Afirmando Direitos
Para analisar a complexa equação entre trabalho materno e guarda, precisamos entender os princípios legais que norteiam as decisões judiciais e como eles se aplicam na prática.
1. O Princípio Soberano: O Melhor Interesse da Criança
Todo e qualquer processo que envolve menores de idade é regido por um pilar central: o Princípio do Melhor Interesse da Criança e do Adolescente.
O que isso significa na prática? Significa que o juiz não está julgando quem é o “melhor” pai ou a “melhor” mãe em abstrato. O magistrado analisa, de forma concreta, qual arranjo familiar e residencial atende com mais eficácia às necessidades fundamentais da criança – emocionais, educacionais, materiais e de saúde.
Trabalhar em dois empregos para pagar uma boa escola, manter o plano de saúde ou prover uma alimentação de qualidade é, por definição, um ato que visa o melhor interesse da criança. O Judiciário tem plena consciência das dificuldades econômicas do país e não “pune” o genitor que se sacrifica financeiramente pelos filhos.
2. Ausência vs. Negligência: Uma Distinção Crucial
É aqui que reside o ponto nevrálgico da questão. A alegação de “ausência” só ganha relevância jurídica se ela se configurar como negligência.
- Trabalho (Ausência Justificada): A mãe que está no segundo emprego, enquanto a criança está na escola, na creche ou sob os cuidados de uma rede de apoio confiável (como os avós), não está sendo negligente. Ela está organizando a vida do menor para que suas necessidades sejam supridas enquanto ela provê o sustento.
- Negligência (Abandono): Diferente é o caso do genitor que, mesmo tendo tempo disponível, deixa a criança sozinha, em situação de risco, sem supervisão, ou falha em prover suas necessidades básicas de higiene, saúde e alimentação.
A perda da guarda (ou, mais drasticamente, a destituição do poder familiar) ocorre apenas em cenários extremos que envolvem risco real à integridade física ou psíquica da criança (Art. 1.638 do Código Civil), como abuso, maus-tratos ou o abandono de fato. Trabalhar muito é o exato oposto disso.
3. A Regra é a Guarda Compartilhada (e o que isso realmente significa)
Desde 2014 (Lei nº 13.058), a guarda compartilhada é a regra no Brasil, mesmo quando não há consenso entre os pais. É fundamental entender o que ela é e o que ela não é.
Muitos confundem “guarda compartilhada” com “guarda alternada” (onde a criança passa 15 dias com cada um). Não é isso.
Na guarda compartilhada, ambos os pais são igualmente responsáveis pelas decisões importantes na vida do filho (escolha da escola, tratamentos médicos, religião, etc.). O tempo de convivência deve ser dividido de forma “equilibrada”, mas isso não significa 50% do tempo para cada um.
4. A Solução: Guarda Compartilhada com “Lar de Referência”
A solução jurídica ideal para o caso da mãe que trabalha em dois empregos é a fixação da guarda compartilhada, com estabelecimento do lar de referência materno.
Neste modelo:
- Guarda é Compartilhada: O pai e a mãe decidem tudo em conjunto.
- Lar de Referência é o Materno: A criança tem sua base residencial fixa com a mãe, mantendo sua rotina, seu quarto, seus objetos e seu vínculo de estabilidade.
- Regime de Convivência (Visitas): O pai terá um regime de convivência amplo (ex: fins de semana alternados, um ou dois dias na semana, metade das férias) que lhe permita participar ativamente da vida do filho, inclusive auxiliando a mãe durante sua jornada de trabalho.
Este modelo prestigia a mãe que, apesar da carga de trabalho, é a referência afetiva e de estabilidade da criança, ao mesmo tempo em que obriga o pai a dividir as responsabilidades (e não apenas as decisões).
5. O Papel da Pensão Alimentícia e da Rede de Apoio
Dois fatores são essenciais para fortalecer a posição da mãe perante o juiz: a rede de apoio e a discussão sobre alimentos.
- A Rede de Apoio: A mãe deve demonstrar ao juiz como a rotina da criança é estruturada durante sua ausência. Quem busca na escola? Onde ela fica no contraturno? A criança frequenta uma creche de confiança? Os avós auxiliam? Demonstrar uma rede de apoio sólida e segura (seja ela familiar ou paga) prova que a criança está bem assistida.
- A Pensão Alimentícia: Frequentemente, a mãe só precisa de dois empregos porque a pensão alimentícia paga pelo pai é insuficiente para cobrir as necessidades da criança. Esta é uma questão central. O advogado da mãe deve demonstrar que o ônus financeiro está desproporcional. A obrigação de sustento (Art. 1.694 do CC) é de ambos os genitores, na proporção de suas possibilidades. Se a pensão fosse adequada, talvez a jornada dupla não fosse necessária.
O Trabalho como Expressão de Cuidado
A guarda dos filhos quando a mãe trabalha em dois empregos não deve ser vista como um problema, mas como uma realidade que exige soluções jurídicas inteligentes e sensíveis. O esforço despendido pela mãe para prover um futuro melhor não é motivo para punição ou perda de guarda; pelo contrário, é uma demonstração robusta de seu comprometimento com o bem-estar do filho.
A legislação brasileira evoluiu para entender que o “cuidado” não se mede apenas em horas de presença, mas na qualidade do vínculo, na estabilidade proporcionada e na responsabilidade compartilhada. A chave está em estruturar um modelo de guarda compartilhada com lar de referência que respeite a rotina da criança e reconheça a realidade laboral da mãe, sem deixar de responsabilizar o outro genitor por sua parcela (tanto afetiva quanto financeira).
Contudo, cada caso possui nuances. Apresentar ao juiz a existência de uma rede de apoio confiável ou vincular a necessidade do segundo emprego à insuficiência da pensão alimentícia são estratégias jurídicas que exigem análise técnica.
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